Princesa Arabela, mimada que só ela


Por Vinicius Alves da Silva  

Quarta-feira, 16 de maio de 2018 e a turma do maternal E está chegando à sala 5 da EPG Martins Pena. As professoras não gostam quando as crianças demoram a pegar o caderno e o copo em suas mochilas, também chamam a atenção daquelas que ficam logo na entrada da sala, atrapalhando a passagem. Nesse momento de chegada, Kelly e Grasiely costumam conversar sobre o planejamento, materiais e a festa da família, que acontecerá no final do mês. Elas também olham os cadernos para ver se existem comunicados dos/as responsáveis pelas crianças e fazem a chamada (a chamada é realizada por uma das professoras sem que seja preciso chamar as crianças uma a uma, elas conferem quem está na sala e preenchem a tabela).
Enquanto fazem essas atividades iniciais as crianças brincam com brinquedos diversos. Hoje a professora Grasi distribuiu panelas, liquidificadores, micro-ondas, pratos, copos, talheres, fogões e outros brinquedos relacionados à cozinha para todas as crianças da sala. As crianças interagem facilmente entre elas. Organizam suas cozinhas e percebem os utensílios que não possuem. Rapidamente são formadas algumas duplas para a brincadeira, instigadas, principalmente, pela proximidade em que as crianças estão sentadas. Brincam com os pares que estão em ambos os lados. A sala possui dois conjuntos de carteiras que formam hexágonos, cada um composto por seis mesas com cadeiras coloridas e uma mesa simples redonda com oito cadeiras. 
Enquanto uma professora toma café da manhã, a outra desenvolve alguma atividade com a turma. Nessa quarta, assim como o dia anterior, quando a professora Grasi foi tomar o seu café, Kelly cantou cantigas e leu uma história para as crianças. A contação de hoje é sobre a "Princesa Arabela, mimada que só ela" escrita por Mylo Freeman. 
O dia do aniversário de Arabela estava chegando e o Rei e a Rainha, seu pai e sua mãe, não sabiam com o que lhe presentear. Os pais de Arabela resolveram perguntar o que ela gostaria de ganhar, mas antes da menina responder sugeriram alguns presentes: um par de patins com rubis nas rodas, uma bicicleta dourada, um ratinho de pelúcia, uma zebra de balanço e outros tantos presentes. Mas Arabela já tinha tudo o que seus pais estavam lhe oferecendo, agora, ela queria algo diferente. Arabela quer um elefante de presente de aniversário! Apesar das dificuldades de encontrar e conseguir que deixassem levar um elefante ao castelo, os servos do Rei conseguiram essa proeza. No dia do aniversário de Arabela, quando a princesa acordou, o elefante já estava em seu quarto. Acontece que o elefante não quis brincar com a princesa e só fez chorar. O elefante chorava e Arabela já estava com água nos tornozelos, ou melhor, lágrimas nos tornozelos. A princesa decidiu levar o elefante de volta ao lugar de onde veio. Quando finalmente chegaram ao local, foram recebidas por uma elefante criança e acreditem, elas: a princesa e a elefanta, sim uma elefanta! E aquela elefantinha que vinha feliz carregando um balão de aniversário, vinha feliz porquê sua mãe havia voltado na hora certa e com um presente para ela. Acreditem se quiserem, a elefantinha sempre quis uma princesinha de presente, e ali estava ela. 
Quando a professora Kelly terminou de contar a história de Arabela iniciou uma conversa junto às crianças:
- Se ela pedisse as coisas e a mãe não desse, o que ela iria fazer?
A sala cochichou. Ana Luíza começou a falar, mas desistiu; a professora percebeu e disse:

- Pode falar Ana Luíza. 
- Escândalo! Respondeu a Ana. E acrescentou: - Eu não faço isso.
- Ah! Que bom Ana Luíza que você não faz escândalo. Comentou Kelly. 
- Porque eu espero a minha mãe me dar. 
Após uma breve discussão sobre a Arabela não pensar na origem do elefante e nem em sua família, a professora propôs um combinado para a turma:
- Hoje a palavra "comprar" está proibida, combinado? E as crianças consentiram à proposta. 
No primeiro dia de imersão eu havia percebido o quanto as crianças falam sobre compras e, em uma espécie de disputa entre elas mesmas, dizem disparadamente coisas que possuem e que irão possuir como, por exemplo:
- Sabia que minha mãe vai me dar uma Elsa gigante que canta no meu aniversário?
A Ana Luíza é uma das que fazem isso há todo momento. Comenta que irá realizar uma viagem aos parques da Disney, comenta dos brinquedos, das roupas. As outras meninas acompanham a Ana como em um "ping pong" do consumo. A professora Kelly já havia comentado sobre isso com as crianças e comigo. Disse que iria fazer alguma intervenção, pois não estava achando essa relação saudável. Chegando até a questionar para a turma:
- Legal! E educação, quem tem? 
É claro que esse questionamento de Kelly não foi tão positivo, mas sua preocupação e percepção em relação ao assunto e às crianças é muito positivo. 
[...] é necessário que a criança participe socialmente de situações mediadores que favoreçam o conhecimento crítico e reflexivo. Desse modo, os adultos que fazem parte da vida social de crianças têm o papel fundamental de mediar essas leituras mais amplas, incentivando-as e preparando-as para a compreensão crítica da realidade. Consideramos o papel da escola na infância e a prática mediadora do professor de educação infantil como possíveis alternativas na formação do pensamento infantil e que resultem em ações de superação da lógica de padronização e governamento via a cultura consumista (OLIVEIRA, 2012, p. 13).

Após a contação de história Kelly comentou sobre como as crianças entendem as conceitos em relação à leitura do livro e que a Ana Luíza deve fazer escândalo já que deu o depoimento contrário.Quando me disse isso, lembrei de uma situação que havia acontecido no momento da brincadeira com as "panelinhas". 
- Amanda me empresta um copo? Ana Luíza perguntou e a Amanda não respondeu. 
- Toma. Disse a Dulcy. 
- Vou colocar suco pra você. Respondeu Ana, pegando o copo e enchendo-o de suco. 
Passado um momento, Ana chamou a Amanda, que estava sentada do outro lado da mesa, novamente:
- Amanda! E um dos meninos disse:
- O Amanda! Ela quer um copo.
Desde o primeiro dia eu havia intervido nas brincadeiras falando que eles deveriam pedir emprestado caso quisessem brincar, também, com o brinquedo que o outro recebeu ou sugerir uma troca. Também intervim para que cozinhassem juntos e juntas e que todos pudessem comer. Quando eu experimento a comida de alguma criança, todas querem me oferecer algo:
- Tó, suco de limão. 
- Oferece pra eles. Sugeri. 
- Qué? Suco de limão. O Kevin ofereceu ao Talisson.
- Hum, que gostoso! Comentou o Talisson.
Acontece que na situação do copo a Ana Luíza queria um copo da Amanda. Ana estava realmente sem copo, então depois de perceber a insistência, perguntei às professoras se poderia pegar um copo, dos que ainda estavam guardados. Elas consentiram, eu peguei o copo e levei para a Ana. Não havia me atentado que ela poderia pedir um copo para qualquer uma das crianças da turma, muito menos que ela queria um copo roxo. Não era qualquer copo. O fato é que a história contada pela professora me fez refletir sobre o por que Ana insistia tanto no copo da Amanda e o quanto Ana se identificou com Arabela. Também me fez refletir sobre o por que fui atrás de um copo para Ana Luíza e as relações das crianças com a sociedade de consumo. Para essas questões ainda não cheguei a uma conclusão, mas concordo com Paqonawta quando ele diz que:
A preocupação e ocupação com o “tema”, e tudo o que ele envolve, deve transpassar todas as relações refletidas ou experienciadas nos estabelecimentos de ensino, para não só “discutir” cidadania, mas para “vivenciar” essa condição cidadã em todos os momentos da vida na comunidade escolar, de maneira crítica, participativa e criativa, não apenas na reprodução daqueles relações autoritárias, mas na superação dessas e re-criação de um outro mundo, de uma outra escola, de uma outra infância (2014, s/n).
REFERÊNCIAS: 
OLIVEIRA, Marta Regina Furlan de. A infância e a cultura do consumo na sociedade contemporânea. XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino. UNICAMP, Campinas, p. 2-14, 2012;  
PAQONAWTA, Leonardo Nogueira. Criança, escola e consumismo infantil: uma “mãonifestação” pelos direitos da infância. REBRINC - Rede Brasileira Infância e Consumo, 2014. Disponível em: <http://rebrinc.com.br/biblioteca/artigos/crianca-escola-e-consumismo-infantil-uma-maonifestacao-pelos-direitos-da-infancia/>. Acesso em 19 de mai de 2018.

Comentários

  1. Muito oportuna sua reflexão, Vinicius.
    Estamos em uma creche, em uma escola pública e o tema consumo surge com muita força.

    A situação nos permite refletir sobre o tema e sobre a forma como ele é abordado na creche: o que pensamos sobre o assunto, o que conhecemos, existem outras possibilidades, outras alternativas de abordagem do tema com as crianças?

    Muito boa sua reflexão sobre sua intervenção: "O fato é que a história contada pela professora me fez refletir sobre o por que Ana insistia tanto no copo da Amanda e o quanto Ana se identificou com Arabela. Também me fez refletir sobre o por que fui atrás de um copo para Ana Luíza e as relações das crianças com a sociedade de consumo..."
    A boa mediação exige reflexão: por que fiz assim? Poderia ter sido de outra forma?

    A situação nos faz pensar no desenvolvimento cultural da criança, no papel da cultura na constituição de suas sujetividades, em como são amplas, diversas e complexas as condições de constituição e, nesse contexto, o papel de diferentes mídias e sua incidência sobre as crianças.

    Você acha que os artigo de Leonardo PAQONAWTA pode nos ajudar nessa reflexão? Indica o artigo para o grupo?

    Como podemos entender a RELAÇÃO, proposta por Paqonawta, entre a preocupação com o tema consumismo infantil e a vivência da condição cidadã, da recriação da escola e de uma outra infancia? Como podemos entender essa(s) afirmação?

    Seu relato nos dá a impressão de que no Maternal E, o trabalho pedagógico pode ser mais planejado/pensado pelas professoras e as crianças parecem falar mais, brincar mais... É isso mesmo? Isso é bom?

    Os relatos de todos vocês me fazem insistir em apontar as enormes possibilidades de movimento, linguagem, cognição, imaginação, convívio social etc das crianças. Essas possibilidades se expressma o tempo todo em sua(delas) abertura a tudo que é proposto, o quê, por outro lado, exige nossa reflexão sobre o que é e o que pode ser oferecido, proposto às crianças.

    Abr.
    Fátima




    http://www.scielo.br/pdf/pcp/v23n1/v23n1a03.pdf
    Mídia, Cultura do Consumo e Constituição da Subjetividade na Infância. Solange Jobim e Cristiana Caldas.

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