Dona maria que dança é essa?

A turma do maternal E é dançante. Podemos perceber isso desde a primeira semana de imersão, quando na sexta-feira (18 de maio de 2018), a professora Kelly colocou músicas infantis para as crianças dançarem e elas simplesmente deram um show. Apesar de existir uma certa divergência de postura entre Kelly e Grasiely, pois a atividade ocorreu enquanto a Grasiely tomava café da manhã fora da sala e quando essa voltou e foi a vez de Kelly tomar café, foi Kelly sair e a outra professora pedir que as crianças se sentassem e a música ser tirada. Entretanto quando Kelly voltou, antes das crianças irem embora, elas conquistaram mais uns minutinhos de dança e expressão corporal, dessa vez com músicas que pediam, como Dona Maria de Lucas Lima, Thiago Aloisio e Thiago Brava e Olha o gás de MC Vitão com participação de Dennis DJ.

No fim desse mês acontecerá a festa da família na EPG Martins Pena e a professora Kelly escolheu a música O meu sangue ferve por você de Arel Jack, Freddie Meyer e Seraphim, conhecida na interpretação inconfundível de Sidney Magal para as crianças dançarem. No princípio até me solicitaram um auxílio sobre a coreografia, mas com o decorrer dos dias percebi que elas tinham muitas referências de apresentações de outras crianças a partir de registros disponíveis nas redes sociais e achei melhor não intervir. As crianças adoram a música que foi escolhida e cantam e repetem os gestos da coreografia nos momentos livres.
Porém, existe uma certa tradição das apresentações de dança na escola da infância serem baseadas na arte figurativa, uma arte que se desenvolve por meio da mímese, da representação da "realidade" dos seres e objetos a partir de formas já estabelecidas pelos humanos (VINHAL, 2015, p. 15) e as professoras do maternal E parecem mantê-la. Um exemplo dessa tradição nas coreografias da escola da infância é a necessidade de corresponder as ações coreográficas às palavras da música que se dança. Não estou aqui culpando as educadoras por não possuírem formação artística suficiente para possibilitar relações outras com o corpo, estou, sim, lembrando que essa formação humanística de arte deveria ser valorizada e proporcionada em todo o percurso educacional em nossa sociedade, inclusive na formação de professores. 
Crianças experimentando perucas para o dia da família
Lenira Rengel nos recorda que o papel da dança na escola:
[...] é o de permitir a vivência de possibilidades infinitas do universo do movimento, estimulando a experiência do sistema corporal em um amplo sentido: experiência, criação/produção e análise/fruição artística. Ao focarem a dança com uma leitura predeterminada, professores e alunos estarão agindo com coerção para com a atitude cognitiva do corpo como um todo (2008, p. 3).
Nesse sentido a imitação que as crianças fazem da professora, que por sua vez imitam uma coreografia apresentada por outras crianças de outra escola que, predominantemente, corresponde as palavras da música aos gestos, me parecem uma atitude coercitiva inconsciente, mas que deve ser objeto de reflexão.
Outro dia, quando estávamos dançando livremente pela sala as crianças pediram a Dona Maria, a professora Kelly disse pra mim que conhecia outra música da Dona Maria, mas que não poderia colocar para as crianças, pedi permissão para colocar uma outra música da Dona Maria que eu conhecia e coloquei, então, a música Dança do Carimbó na interpretação de Pinduca. Foi interessante notar que as crianças dançavam livremente até o segundo verso onde o cantor orienta:
Braço pra cima
Braço pra baixo
Agora eu já sei
Como é que é
Só falta bater a mão
Batendo também o pé
As crianças repetem as orientações de Pinduca, com a mesma prontidão que fazem na música Cabeça, Ombro, Joelho e Pé interpretada por Xuxa, mas diferente da música de Xuxa elas ainda aproveitam momentos de expressão "livre". Livre, mais ou menos, pois como já discutimos aqui no blog o controle disciplinar dos corpos é muito grande e as professoras não deixam por exemplo que as crianças vão ao chão dançando, aconteceram momentos que até brigaram porque as crianças estavam dançando umas com as outras.  
[...] se o professor/educador conduzir seus alunos apenas para movimentos codificados e estereotipados, estará mostrando um aspecto limitado, dos inúmeros que a Arte da Dança tem. O conhecimento de princípios gerais da linguagem do movimento, do uso do espaço, do som, por exemplo, fornece um instrumental para que as aulas de dança proporcionem aos alunos uma movimentação menos restrita e mais de acordo com a criatividade e o desenvolvimento deles (RENGEL, 2008, p. 12).
Entendo que não se trata de uma aula específica de dança, mas quando propomos a ação de dançar, devemos levar em consideração o que a área nos orienta. Apesar de todo controle, as crianças dançam, por vezes, as professoras ordenavam que ficassem cada um em seu lugar para ouvir uma música e quando víamos, já estavam lá, todas em pé dançando, às vezes ao lado de suas carteiras, às vezes ocupando a sala com um trem coletivo dançante. 
Essa relação de controle do corpo aparece em todos os âmbitos e o seu controle é um elemento de punição frequentemente utilizado pelas professoras. Em minha primeira postagem aqui no blog comentei sobre o Tallison parecer estar acostumado a ficar sentado no chão ao lado das professoras durante os momentos de brincadeira no parque, pois quando ele brinca nesses ambientes abertos, naturalmente, se põe a correr e as professoras o punem colocando-o de castigo. Essa atitude de vigilância e punição é tão naturalizada que um dia, ao me sentar no chão ao lado das professoras, com o intuito de descansar um pouco das brincadeiras que estava participando, o Antônio veio até mim e me perguntou:
- Professor, o senhor está de castigo?
Eu mesmo, me vigiava durante as brincadeiras no parque, pois, sem perceber, incentivei as crianças em vários dias e momentos a brincar correndo. Tanto faz se era fugindo do Lobo Mau ou da Bruxa, se era investigando as folhas e formigas ou seguindo o que o mestre mandou. 
Outras questões também estão presentes na hora de dançar como, por exemplo, no dia em que Ântonio me perguntou se eu estava de castigo vi as meninas reunidas em um canto do parque eu fui observar o que estavam fazendo. Elas estavam brincando de balé, me prontifiquei a brincar com elas e a Ana Luísa não teve dúvidas ao me advertir que menino não poderia dançar balé. Disse a ela que poderia dançar sim e que muitos homens são bailarinos, entrei na brincadeira e quando percebi já tinha um monte de menino fazendo a aula de balé conosco. 
A dança deve ser inserida como uma prática conjunta de meninos e meninas, propiciando as mesmas vivências de movimento para ambos, nas aulas de Educação Física, fundamentada na compreensão de que o movimento não tem sexo, e de que a discriminação tradicional de movimentos para homens e mulheres é construída no processo de socialização das pessoas, sendo atrelada a valores culturais (KUNZ, 2006 apud FEITOSA; PINTO, 2017, p. 58).
É sabido que na Educação Infantil não estão presentes as divisões de áreas do conhecimento, entretanto os documentos norteadores para o trabalho com as crianças pequenas orientam o trabalho com o corpo e motricidade, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEIs (2010) e o Quadro de Saberes Necessários de Guarulhos - QSN (2010). São necessárias intervenções pedagógicas que considerem o trabalho com as questões de gênero, não apenas no tocante à dança, mas às questões de socialização e identidade em geral.
Também, reconheço que o trabalho com a arte figurativa é necessário e que o problema está no reducionismo que não considera outras linguagens e possibilidades de expressão. Como alternativa didática à arte figurativa podemos buscar as referências da arte abstrata que, me parece, ser mais aberta à participação e ao diálogo tanto com quem cria, quanto com quem a lê: 
A arte abstrata comunica, no sentido de levar seu receptor a educar-se para construir julgamentos ou juízos de valor sobre ela. Na figuração ainda há um conceito hegemônico a ser seguido pela própria figura. Na abstração o conceito é diverso diretrizado pela pulsão e fusão das cores, elas que tanto cantam, tanto tem musicalidade e ressonância, elementos que comprometem as tensões, os vários pesos e as várias medidas na obra (FORTUNA, 2001, p. 8).
Defendo um espaço da dança na educação que seja para o desenvolvimento integral e emancipador de todas personagens envolvidas na ação educativa. Busquei dentro do plano de ação pedagógica (PAP), desenvolvido com as crianças, propiciar uma viagem de faz de conta à França que levasse em consideração o movimento do corpo como fundamental para o desenvolvimento do jogo e da interação. E concordo com Lenira ao discutir a práxis pedagógica e ir contra a divisão entre corpo e mente:
Ensinar ao aluno que agora é hora da “dancinha” ou da “aulinha de arte” para ele relaxar, suar, “praticar a criatividade”, é justamente assassinar a sua criatividade, tirar dele a capacidade de saber apreciar esteticamente uma obra e de fazer relações com contextos históricos, sociais, políticos, ambientais. Os jogos espaciais e temporais, entre outros, de uma aula de Educação de Arte, são necessários ao desenvolvimento de noções de geometria, matemática ou física e os conceitos nessas disciplinas aprendidos são igualmente necessários para a aprendizagem artística. Noções de anatomia dadas nas disciplinas de Ciências e Biologia deveriam ser partes integrantes das de Dança ou Educação Física. A proposta desses diálogos interdisciplinares colaboraria para atender o corpo, que já une, sozinho, teoria e prática. Pensar é uma forma de sentir, sentir é uma forma de pensar. A teoria se faz em prática e a prática formata a teoria, pois elas estão, juntas, agindo nos textos do corpo (2008, p. 5).

Referências
FEITOSA, Roberta P.; PINTO, Celeida B. G. C.. O ensino da dança e a relação de gênero na educação básica. Universitas: Ciências da Saúde, Brasília, v. 15, n. 1, p. 57-65, jan./jun. 2017;
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987;
FORTUNA, Marlene. Arte Abstrata: Uma nova forma de comunicação que exige realfabetização visual. Um princípio diferente de educar. INTERCOM  – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001;
RENGEL, Lenira. Ler a dança com todos os sentidos. Cultura e Currículo, Governo do Estado de São Paulo. 2008b.Disponível em <http://culturaecurriculo.fde.sp.gov.br/administracao/anexos/documentos/420090630140353ler%20a%20danca%20com%20todos%20os%20sentidos.pdf >. Acesso em junho de 2018;
VINHAL, Ana Carolina Silva. Entre abstração e figuração: uma reflexão sobre as danças de Cunningham e Pina Bausch. Monografia (Bacharelado em Dança. Universidade Federal de Uberlândia - UFU. Umberlândia, 2015, 49 p. 

Comentários

  1. Professora, perdão por ainda não ter postado nada sobre o PAP. Agora que consegui entregar todos os relatórios das RPEJA e RPEF vou conseguir dar mais atenção ao blog e ao relatório final.

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  2. Perdoadíssimo.
    (brincadeira!)
    Eu sei que vocês estão "sobrecarregados" de trabalhos!

    Vinicius, eu aprendi muito lendo sua postagem.
    Espero que as colegas também leiam e comentem.

    Antecipo que achei muito oportuna sua atenção às músicas cantadas e às coreografias relacionadas aos controles do corpo, às questões de gênero, à disciplina.
    Você consegue compreender e nos mostrar como tudo é articulado.

    Sem juízo de valor, você nos diz de escolhas musicais que nos fazem pensar (?)
    (Conheci a"Dancinha do Gas"...)

    Relatando os acontecimentos, você nos mostra que as crianças que cantam e dançam a coreografia de "Meu sangue ferve por você (e Dancinha do Gás e D. Maria) são também as crianças que acham que balé é coisa de menina, que só podem sentar ao lado da professora se estiverem de castigo e que DEVEM se ater aos movimentos coreografados quando dançam. Relatando você nos permite perceber que nas situações/atividades propostas às crianças, o que parece inconsistente e aleatório tem relação, há ligação e coerência entre o que é ofertado e o nexo é disciplinador.

    Lendo a postagem conheci os trabalhos de Roberta Feitosa e Celeida Pinto e o de Lenira Rangel, conhecendo os argumentos que fundamentam suas observações de forma que nos ajudar a ampliar nossa percepção das situações relatadas e a pensar em alternativas. Se eu intuia que não era adequado, agora eu tenho argumentos para entender minha intuição(!) = o ensaio, a coreografia "ensaiada" limitam as possibilidades de apreciação e expressão da/pela dança.

    Seu registro fala da importância da função mediadora do professor: de como ela pode ser restritiva, de como as ofertas - ainda que existam - podem limitar uma participação emancipadora das crianças, porque limitam a expressão de seus movimentos, de suas linguagens, de seus sentimentos, de desenvolvimento da função volitiva , da capacidade de escolher etc

    Principalmente você nos mostra que as crianças que são, ao mesmo tempo, obdientes e dançantes, são brincantes(*), pois conseguem, a despeito de todo cerceamento, ensaiar movimentos livres dançando carimbó, se balançando até quando devem permanecer nas cadeiras e subvertendo, nem que seja por instantes, a ideia de que balé é coisa só de menina.

    E também nos permite fazer uma constatação: para que, na escola, as crianças possam estar em estado de "graça"- de brincadeira - só basta um parceiro(mediador) que dê um "empurrãzinho" (para a França, para o carimbó, para a floresta, para fugir do lobo mau...)

    Abr.
    Fátima


    *Brincante é aquele que brinca, brincador. "Brincante é um estado de graça"!

    Compartilho com vocês o trabalho de Andressa Moreira, feito no instituto de Psicologia da UNB, tendo como base a teoria histórico-cultural (Vigotski e Bakhtin) - “Brincante é um estado de graça”: Sentidos do brincar na cultura popular.

    http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/19128/1/2015_AndressaUrtigaMoreira.pdf






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