Vem Miguel pegar o brinquedo!

Por Vinicius Alves da Silva

Desde o primeiro dia de imersão venho acompanhando a mesma rotina em relação aos brinquedos que ficam na sala do maternal E. Principalmente no primeiro momento do dia as crianças brincam com brinquedos diversos, enquanto as professoras olham os cadernos e organizam as atividade que serão realizadas mais tarde. A sala possui uma caixa de brinquedos disponibilizados pela escola e outras três de brinquedos que as professoras trouxeram de suas casas. A caixa de brinquedos da escola está disponível em baixo da mesa onde fica o filtro de barro, mas nenhuma criança ousa mexer sem a ordem das professoras, duas caixas ficam em cima do armário com etiquetas dizendo que aqueles brinquedos pertencem às professoras Kelly e Grasi e uma outra fica guardada dentro do armário.
No dia 17 de maio uma coisa me chamou a atenção: a professora Grasiely brigou com o Felipe porque ele demorou para escolher um brinquedo da caixa e o deixou sem brinquedo nenhum, enquanto as outras crianças brincavam. A professora foi muito agressiva na postura, no tom e volume da voz e o menino não conseguia nem se movimentar direito, com medo e olhos cheios de lágrimas.
No dia seguinte foi a vez do Calebe demorar a escolher e a professora novamente chamou a atenção, mas agora em menor escala de volume de voz e postura agressiva, dentro dessa relação de poder e hierarquia entre criança-aluno/a e professor/a. O menino Davi quando foi pegar o brinquedo trazia em seu corpo uma postura de exército, o soldado foi escolher o seu brinquedo do dia, marchando e Foucault (1987) sussurrou em meu ouvido: 
- Eu avisei!
Esses acontecimentos me fizeram refletir sobre uma questão que, até o momento, estava me passando despercebida. Todos os dias a professora Grasiely coloca uma caixa de brinquedos no chão da sala e vai chamando uma criança de cada vez, que devem levantar dos seus lugares, ir até a caixa organizadora, escolher um brinquedo e voltar ao seu lugar para brincar sentada. 
A articulação corpo-objeto: a disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com o objeto que manipula. Ela estabelece cuidadosa engrenagem entre um e outro (FOUCAULT, 1987, p. 178).
Porque escolher um brinquedo da caixa? Porque pegar os brinquedos na caixa? Porque escolher um brinquedo? Precisa ser rápido para escolher entre as opções de brinquedos? Será que eu conseguiria escolher apenas um? Fiquei pensando como eu faria no lugar das professoras. Sinto uma vontade tremenda de virar a caixa de brinquedos no chão, afastar as mesas e brincar com todos os brinquedos e todas as crianças, por toda a sala!
Como venho observando esse tema desde o início da imersão outras questões foram aparecendo. Percebi, por exemplo, que todas as vezes que a caixa de brinquedos é colocada no chão a primeira criança a ser chamada é o Miguel. Foi assim no dia 17, 18, 21, 23 e 24 de maio. Sempre assim, caixa de brinquedos ao chão e a voz de Grasi:
- Vai Miguel.
Nesse último dia, a professora, irônica, chamou:
- Vem Miguel pegar o brinquedo nessa caixa maravilhosa da escola!
A professora me pareceu comparar os brinquedos que elas trouxeram para a escola com os que lá já estão disponíveis. Também, já aconteceu de Grasi perguntar se as crianças queriam uma das caixas que estavam em cima do armário, elas responderem que sim e a professora dizer que iriam brincar com a do chão mesmo, porque a outra era muito pesada e ela não iria pegar naquele momento. 
Dentro da hierarquização entre os alunos temos um outro menino que se destaca, ele é considerado o "filho" de Kelly e Grasiely faz piadas com essa relação sempre que possível. Fabio faltou durante vários dias e nos dias em que esteve presente quebrava as regras de escolha do brinquedo tranquilamente, conseguia pegar mais de um e pegar novos brinquedos durante a brincadeira. Percebi que outras crianças também conseguem fazer isso, mas fazem sabendo que estão quebrando regras e com o olhar desconfiado para a professora.Na última sexta-feira, por exemplo, Cauê teve dificuldade de entender que poderia sentar na outra mesa e brincar com os seus colegas, porque a maioria das crianças haviam faltado por conta da greve dos caminhoneiros e a sala estava vazia, mesmo eu convidando e a professora também, foi preciso que ficasse claro que a mudança de lugar não lhe acarretariam punições. 
As disciplinas, organizando as “celas”, os “lugares” e as “fileiras” criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a disposição de edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias (FOUCAULT, 1987, p. 174).
Fazem parte dessa relação de vigilância e punição não fazer muito barulho, brincar em suas cadeiras, com um brinquedo e durante um tempo determinado faz parte da relação de poder e hierarquia que age sobre os corpos dessas crianças. Também fazem parte da disciplina as constantes cobranças sobre a velocidade com que as crianças fazem as coisas. Assim como devem escolher o brinquedo, devem usar o banheiro, retirar e guardar as coisas de suas mochilas, pintar os desenhos e almoçar com a mesma rapidez. Não são poucos as vezes que escutamos as professoras dizendo: 
- Vai!
- Vamos!
- Rápido!
- Não enrola!
As professoras hierarquizam as crianças durante todo o tempo, mesmo que indiretamente, quando fazem duplas de brincadeiras, por exemplo, fazem de acordo com os mais rápidos e os mais lentos. Ironizam as lentidões, gritam e punem deixando sem o brinquedo ou colocando sentados em uma cadeira ao lado delas. Essa reflexão me lembrou quatros figuras disponíveis no documento "Brinquedos e brincadeiras de creches" (1012, p. 17) do MEC ao discutir as ações recíprocas entre professoras e crianças e que compartilho com vocês como exemplo de que são nos mínimos detalhes que instituímos relações de dominação e formamos docilidades.  




REFERÊNCIAS:

BRASIL. Ministério de Educação. Secretaria de Educação Básica. Brinquedos e brincadeiras de creches: manual de orientação pedagógica. Brasília: MEC/SEB, 2012;
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987. 

Comentários

  1. Vinícius, as suas reflexões são sempre enriquecedoras.
    Quanto às posturas das professoras e a figura que você trouxe como referência do MEC, também percebi e cada vez mais quero estar junto às crianças, me envolvendo em olhares sinceros. Às vezes, sinto que elas precisam e são bem carentes em relação a essa aproximação.

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  2. Thais e Vinicius,
    eu soube que a escola recebeu da prefeitura uma caixa de livro (com selo Cocoricó) que tematizam a questão das diferenças e diversidade.
    Talvez isso explique a circulação dessa coleção de livros pela escola.
    Me parece que os livros de Maria Cristina Vieira fazem parte dessa coleção.
    Vou tentar descobrir um pouco mais sobre a coleção e sobre a autora.
    Procurem atentar para como as histórias tematizam as questões que remetem à diversidade e as diferenças. Estou curiosa.

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